16. UMA GRAVATA PARA CADA BURRO
Durante semanas, a redacção da "Parada da Paródia" foi animada por uma das grandes polémicas que preencheram as páginas de vários números consecutivos: a grave questão da gravata!
Tudo começou numa noite, quando, terminada a reunião da redacção, resolvi ir, com o Ruy Andrade, tomar uns copos a uma "boîte" que havia ali perto do Camões, chamada "Bico Dourado", e que tinha como emblema um colorido papagaio. Passei por casa, tomei um banho, esfreguei-me com água de colónia, apliquei pó de talco nos sítios apropriados e empinoquei-me todo, com camisinha de seda italiana, fato novo, sapatos bem engraxados, tudo do melhor, já que, nesse tempo, a vida não me corria mal.
Lá fomos, de táxi. Apeámo-nos à porta da "boîte", o porteiro tirou o boné, o Ruy entrou - e eu, inesperadamente, sou impedido de passar. "Desculpe" - dizia o porteiro "mas o senhor não pode entrar assim. Não traz gravata..."
Realmente, não levava gravata. Nem a camisa a pedia, nem eu gostava de atar ao pescoço esse trapinho, que era então uma espécie de símbolo, nem sei bem de quê. É preciso que se saiba que, nesses belos anos sessenta, cenas destas aconteciam com alguma frequência. Era assim que, por exemplo, no Café Chave D'Ouro, no Rossio, o porteiro, todo engalanado como um general de opereta, também proibia a entrada aos indígenas desengravatados. Mas, aí, tínhamos nós, os contestatários, um truque infalível: entrávamos, dois a dois, sem gravatas - a falar Inglês! O homem todo se curvava em vénias e chapeladas, e acho que nunca chegou a descobrir a marosca.
Mas agora, no "Bico Dourado", a coisa estava feia. O porteiro insistia em me emprestar uma gravata sebenta que lá tinha, para estas crises, o que eu recusei redondamente: "Eu estou decentemente vestido! Portanto, quero entrar!" E o homem, aflito, muito encavacado, a falar de "ordens da gerência"...
O cúmulo da anedota foi quando, no meio disto, passa por nós um tipo todo mal enjorcado, amarrotado, com o ar mais enxovalhado deste mundo, de barba por fazer, imundo - mas com gravata. Foi respeitosamente saudado, e entrou. Passei-me por completo! Fiz um escândalo, falei com o gerente, que me dizia: "Sim, eu reconheço que o senhor até está muito bem apresentado, mas, compreende, é por causa das senhoras... As senhoras podiam não gostar..." E eu, danado: "Senhoras? As tipas a quem chama senhoras, que estão aí dentro, até haviam de agradecer que a gente entrasse já em cuecas, para poupar tempo!" - e outros despautérios deste jaez.
Saí dali disparado para a redacção e, às quatro da manhã, estava a escrever uma prosa violenta sobre uma tal casa chamada "Bico Calado" (ilustrada com o emblema do papagaio, mas com uma gravata atada ao bico) e com um slogan agressivo: "Dêem uma gravata a cada burro... e até os burros, se tiverem gravata, têm entrada nas boîtes, com direiro a vénia do porteiro!".
Aquilo deu origem a uma campanha, que durou várias semanas, e que teve os seguintes efeitos práticos: o proprietário do "Bico" telefonou-me, implorando que não insistisse no assunto, porque a clientela passava o tempo a gozar com ele, e já tinha decidido acabar com aquela regra; outras casas, anteriormente renitentes, já condescendiam em deixar entrar homens sem gravata, desde que estivessem decentemente apresentados; e, numa discoteca do Estoril, havia festas todas as noites, em que era proibido entrar de gravata (quem a levasse tinha que deixá-la no bengaleiro!).
Mas, a maior homenagem que foi feita à minha justa luta, foi quando, no jantar do primeiro aniversário da "Parada da Paródia", que reuniu todos os colaboradores, pessoal da oficina gráfica, anunciantes, amigos, etc., toda a gente, sem excepção, apareceu desengravatada!
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